O médico que receitava filmes

Num domingo desses de calor escaldante, depois do sagrado almoço na casa de minha mãe onde me refastelei com a mais deliciosa carne assada na grelha, puxada na manteiga e no alho, feita por mãe Teté, regada pelo maravilhoso feijão mulata gorda e duas colheres de arroz branco, soltinho, feitos por minha mãe, voltei para minha casa e resolvi rever alguns filmes que marcaram a minha vida e de uma forma ou de outra alicerçaram o edifício de minha cinefilia.

Resolvi começar por um dos filmes que mais gosto, um filme que muita gente pensa que é de guerra, mas é de amor, que não tem nenhum personagem feminino em cena de relevância, pois ele fala de um tipo de amor diferente, o amor de um homem por uma ideia, por uma causa, por um povo: “Lawrence da Arábia”.

Como estava cansado, pois aquela manhã havia sido repleta de atividades: cumpri rigorosamente o sétimo mandamento dado por Deus à Moises (cobicei só a minha, e muito), depois fui para a praia onde joguei duas partidas de vôlei e em seguida pratiquei meia hora de intenso frescobol, acabei apagando antes da célebre cena em que Peter O’Toole aparece vestido em seu traje árabe branco e anda sobre o vagão de um trem descarrilhado.

Naquela tarde dormi um profundo e pesado sono e tive um sonho que valeu por muitos filmes. Foi um sonho muito interessante, tão interessante que mais parecia um filme roteirizado e dirigido por dois dos meus cineastas favoritos, Frank Capra e Stanley Kubrick.

Sonhei que eu era médico. Um tipo diferente de médico, pois ao invés de remédios, eu receitava filmes para meus pacientes. Neste sonho eu estava em meu consultório, que tinha aparência de uma sala de montagem de filmes, com uma velha Moviola Atlas de um lado e um divã do outro, onde pessoas das mais diversas procedências iam em busca de cura para os males que os afligia.

Lembro que um dos primeiros pacientes que apareceram em meu consultório foi um sujeito de baixa estatura, meio curvado, com cara de fuinha e já na casa dos 80 anos. Olhei para ele e imediatamente me veio à mente a figura de Ebenezer Scrooge célebre personagem de Charles Dickens. Nem pestanejei, receitei-lhe três filmes que se não o curassem, pelo menos iriam melhorar muito suas deficiências: “Adorável Vagabundo” na veia, “Assim estava escrito”, em cápsulas e um escalda pés com “Cocoon”.

Um amigo me ligou pedindo que eu atendesse emergencialmente uma senadora. Ela entrou em meu consultório e logo vi que ela precisava do melhor dos filmes de Frank Capra, “Mr. Smith goes to Washington” que no Brasil chama-se “A mulher faz o homem” e em Portugal, “Peço a palavra”. Por precaução receitei-lhe também “Nasce uma estrela” na versão com Bárbara Streisand.

Certa manhã, bem cedinho, me apareceu um antropólogo italiano, e depois de examiná-lo receitei para ele “A guerra do fogo” e “Agonia e Êxtase”. Lembro que aquele dia foi bastante movimentado, pois apareceram em meu consultório dois amigos, um padre católico e um pastor evangélico e prescrevi para eles, para que usassem juntos, “A Missão”, “O Mahabarata”, “A última tentação de Cristo” e “A vida de Brian”. Para estes pedi que voltassem assim que tivessem terminado os medicamentos, pois gostaria de ver os resultados.

Naquela mesma tarde fui procurado por um polêmico juiz. Pedi que ele se recostasse no divã, conversei um pouco com ele para saber quais males lhe afligiam e depois de uma minuciosa anamnese, indiquei-lhe “O caso dos irmãos Naves”, combinado com “O galante aventureiro”, mas caso não encontrasse este remédio antigo, poderia usar “Roy Bean, o homem da lei”, dirigido por John Huston com um elenco monumental. Já na porta do consultório o tal juiz me perguntou se eu poderia receitar-lhe algo que o fizesse dormir bem, pois segundo ele, há muito seu tempo de sono era pouco e não era restaurador. Disse-lhe então que ele procurasse algo leve, que o fizesse rememorar sua infância, algo como “Os Goonies”, “Willow, na terra da magia” ou algo mais juvenil, como “Volta ao mundo em 80 dias”, o original, ou mesmo algo mais adulto, mas também revigorante como “Hair”.

Acordei extasiado. Voltei a assistir “Lawrence” e depois chamei minha amada Jacira para assistir comigo “Cinema Paradiso”, fechando com chave de ouro um domingo perfeito, onde amei, pratiquei esportes, convivi com meus amigos e minha família, comi uma refeição divina, assisti filmes espetaculares, dormi e sonhei um sonho maravilhoso.

Na manhã seguinte liguei para meu psicanalista cancelando a sessão daquele dia pois ainda estava sob o maravilhoso efeito daquele sonho.

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Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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