Recebi de um amigo a mensagem abaixo:

“Caro Joaquim,
Nem sempre concordo com suas postagens, principalmente quando você ataca o presidente Bolsonaro, mas reconheço que, dentro de seus critérios, você busca aquilo que para mim é uma das coisas mais importantes em um posicionamento ideológico: Coerência.
Por isso, envio para você algumas perguntas para que possamos, através das respostas que você fornecer a elas, analisar os fatos que as envolvem.
Gostaria de fazer as mesmas perguntas para quatro outros juristas, os ex-ministros do STF, Nelson Jobim e Joaquim Barbosa, o advogado André Marsiglia, e o cientista político Fernando Schuler. Se você puder mande essas perguntas para eles. Penso que seria importante termos uma visão mais ampla sobre esses assuntos.
Perguntas
1 – Em que casos nossa legislação criminaliza a opinião, a expressão de ideias ou a manifestação ideológica? Qual deve ser o foro específico para o julgamento de pessoas que não possuam prerrogativa de função e cometam algum desses delitos?
2 – Pessoas sem prerrogativa de foro, que, insatisfeitas com o resultado das eleições, pedem intervenção das Forças Armadas e depredam prédios públicos federais em Brasília, devem ser denunciadas em qual foro?
3 – Um ex-presidente da República e diversos de seus ex-assessores teriam cometido os crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Segundo a legislação vigente, em qual foro eles devem ser processados?
4 – Existe alguma forma legal de deslocar uma denúncia para foro diferente do previsto segundo as prerrogativas dos acusados?
5 – Existe alguma justificativa legal e justa para que o STF tenha chamado para si a tramitação dos processos das “fake news”, dos atos de 8 de janeiro de 2023 e da chamada “trama golpista”? Em caso positivo, existe alguma justificativa irrefutável para que a lei constitucional de foro seja desrespeitada colocando em seu lugar uma norma inferior e de menor valor legal?
Abraço,
RB”
Nota de Joaquim Haickel: Usei apenas as iniciais dos nomes da pessoa que me mandou essa mensagem, pois não pedi sua autorização para divulgar seu nome.
Tentarei responder as questões propostas com base em meus modestos conhecimentos, e sempre que for necessário recorrei a Constituição Federal e aos códigos referentes aos assuntos abordados, porém desde já antecipo ao amigo que me enviou essas perguntas e a todos os meus poucos leitores, que muito melhor seria se tivéssemos as respostas para esses questionamentos vindas dos quatro juristas citados por ele em sua mensagem.
Resposta para questão 1 – A Constituição de 1988 garante a liberdade de expressão como direito fundamental (art. 5º, IV e IX; art. 220, caput). No plano constitucional, a liberdade é regra, e a censura é vedada. Contudo, a própria Constituição impõe limites, fazendo com que a manifestação de ideias seja punível quando atingir outros bens jurídicos relevantes, como Crimes contra a honra (arts. 138 a 140, CP); Apologia de crime ou criminoso (art. 287, CP); Incitação ao crime (art. 286, CP); Racismo e discriminação (art. 5º, XLII, CF e Lei 7.716/1989); Crimes contra o Estado Democrático de Direito (arts. 359-L e 359-M, CP, Lei 14.197/2021).
Quanto ao foro competente para julgamento dessas pessoas, é a 1ª instância da Justiça. Se o crime for de calúnia, injúria, difamação, caberá a Justiça Estadual, se o crime for contra bens, serviços ou interesses da União, caberá a Justiça Federal (art. 109, IV, CF).
Resposta para questão 2 – Pessoas sem prerrogativa de foro devem ser denunciadas pelo Ministério Público Federal perante a Justiça Federal de 1ª instância do Distrito Federal.
Resposta para questão 3 – A ação penal pública pertence exclusivamente ao Ministério Público (art. 129, I, CF). O foro depende da situação funcional do agente no momento do crime. Um ex-presidente da República perde o foro privilegiado e a denúncia do Ministério Público Federal deve ser feita à Justiça Federal de 1ª instância. No caso de ex-assessores sem prerrogativa de foro, a mesma regra deve ser seguida.
Resposta para questão 4 – Não. A competência penal é definida pela Constituição (arts. 102, 105, 108, 109, CF) e não pode ser alterada por conveniência, mas há exceções normatizadas por lei, como no caso de perda ou renúncia do cargo, quando o processo desce do STF para 1ª instância; no caso de crime sem relação com o cargo, cujo processo já nasce na 1ª instância; no caso de desmembramento do processo, quando os corréus sem foro vão à 1ª instância, o detentor de foro permanece no STF (AP 937-QO, 2018).
Resposta para questão 5- O Supremo Tribunal Federal apresentou três fundamentos principais para concentrar esses processos sob sua jurisdição: Proteção institucional, em relação ao Inquérito 4781 (fake news), invocou o art. 43 do Regimento Interno do STF (RISTF), que permite abrir inquérito de ofício para apurar crimes ocorridos na sede ou contra a Corte, ocorre que esse artigo do RISTF não foi recepcionado pela CF/88; A existência de autoridades com foro privilegiado, alegando que muitos investigados eram parlamentares ou ministros de Estado, o que atrairia competência originária do STF (art. 102, I, “b”, CF), fato que não é verdadeiro em relação aos casos de 8 de janeiro e da trama golpista; Alegando gravidade excepcional, tanto no 8 de janeiro de 2023 quanto na chamada trama golpista, o STF sustentou que havia ataque direto às instituições democráticas, justificando resposta imediata e unificada para proteger o Estado de Direito, o que é um fato bastante controverso, que depende de interpretação pessoal, cujo entendimento pode ser facilmente destorcido.
Ocorre que todos esses fundamentos apresentados pelo STF têm graves e sérias fragilidades: A CF/88 não autoriza o STF a instaurar inquéritos de ofício, estabelecendo literalmente que isso é atribuição do Ministério Público (art. 129, I, CF); A Constituição fixa a competência do STF de forma taxativa (art. 102, CF). Pessoas sem foro privilegiado devem ser processadas na Justiça Federal de 1ª instância. A atração indiscriminada por “conexão” viola o princípio do juiz natural (art. 5º, LIII, CF); o STF passou a ser simultaneamente vítima, investigador, acusador e julgador, o que contraria o sistema acusatório da CF/88 e o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF); A inexistência de imparcialidade por parte de julgadores que aparecem como vítima nesses processos, que tenham se manifestado sobre os réus de maneira desabonadora e antagônica e que tenham atuado como advogado de adversários políticos dos réus.
Espero que as respostas que consegui elaborar para essas questões sejam satisfatórias, mas volto a dizer que muito melhor seria se elas fossem fornecidas por figuras bem mais relevantes que eu, como os ex-ministros do STF, Nelson Jobim e Joaquim Barbosa, o advogado André Marsiglia, e o cientista político Fernando Schuler.