Um Pedaço de Ponte – Parte IV

Dando continuidade ao texto “Um Pedaço de Ponte” leia a seguir:

Incêndios na Pensão Elite
         
          As labaredas iam a uns quinze metros e chegavam até ao teto da Distribuidora de Cereais do Maranhão, prédio colonial de três andares.

O fogo queimava com fúria as sacas de açúcar, de trigo, de arroz de Bom Jardim e de feijão de São João dos Patos. O milho pipocava.

Segundo testemunhas, começou no pátio interno, num depósito de casca de arroz, e se alastrou pelo prédio, até atingir um reservatório de óleo de babaçu e um quarto cheio de sacaria vazia.

Alguém comentou que o incêndio teria sido provocado pelos proprietários da firma, que se encontravam em sérias dificuldades econômicas.

Para os mais velhos e experientes, o incêndio foi causado pelo fogo de Helena: uma bela loura vinda de Marselha no começo dos anos trinta, quando apenas começavam seus vinte anos.

Helena foi trazida da França por Casimiro, dono da conceituada pensão Elite, que fora à Europa buscar mulheres para bem atender seus fregueses.

Casimiro já havia ido à Espanha, Portugal e até mesmo a Paris, mas iria a Marselha pegar o navio “Colombo” para voltar a São Luís.  Numa das docas do porto, sentada numa barrica, Casimiro avistou uma jovem com ar virginal e jeitinho meigo.
Tempos depois Helena era a sensação da Pensão Elite, em São Luis do Maranhão, onde destroçava e apaixonava a todos os homens que pelo menos lhe colocassem as vistas.  Também era conhecida por Senhorita de Guillon por seus eternos apaixonados, “ébrios de amor”.

Seu Francisco Carvalho, o “Carvalhínho”, era um desses apaixonados que nunca, e em tempo algum, conseguiria um beijo sequer da doce e meiga Srta.  de Guillon.  Quando muito, conseguia um olhar carinhoso e inocente, com meiguice e pureza, mas com total desinteresse.

Carvalhinho, “pra falar a verdade”, nunca viu ninguém, ou pelo menos ouviu falar em alguém que houvesse conseguido concretizar o amor com Helena, musa não só sua, mas de todos.

“Havia um mistério cercando aquela moça…” Carvalhinho falava, a intriga e o mistério invadiam nossos corpos pelos ouvidos.  “Nem mesmo Casimiro a tocava” Nunca se entregou a um dos seus apaixonados.

Nem mesmo as outras mulheres eram muito chegadas a Srta. de Guillon, e tudo dela era separado e importado de Paris.

Não durou muito o reinado de Helena, pois numa noite de chuva, relâmpagos e trovões, ela saiu até a sacada de seu quarto e colocou-se ao banho da madrugada. Isso aconteceu há cinqüenta anos, mas ainda hoje arde em Carvalhinho, ainda queima nos freqüentadores da velha Pensão Elite.

Ontem, olhando o fogo consumir, mais uma vez, a antiga Pensão, Carvalhinho lembrava e elucidava para nós o mistério Srta. de Guillon: “… Ali, meu jovem, um dos mais belos espécimes femininos que eu já vi teve seu corpo chamuscado e torrado por um raio. Entre os farrapos queimados de seu vestido, órgãos masculinos contrastando com belos e macios seios, queimados, é verdade, mas belos. órgãos masculinos contrastando com a falta de pêlos no rosto e nas pernas; com a cintura bem feita; com os quadris formosos e com os lábios que eram rubros e suculentos, agora inertes e frios”.

Aquela maravilha de mulher era um homem, vítima de um erro da natureza.  Mulher de cabelos, seios, quadris, rosto, lábios, mulher de alma e de quase todo o corpo.

Para Carvalhinho, aquele novo incêndio era o fogo da Srta. Helena de Guillon que ainda ardia nas paredes, nos corredores, nas salas, em todo aquele prédio.

O prédio queimou durante 36 horas.

1 comentário em “Um Pedaço de Ponte – Parte IV”

  1. Bom dia Joaquim,

    Então Helena de Guillon foi o travesti mais famoso da pensão elite, no Maranhão dos anos 30, a Roberta Close dos anos 80/90 ????
    Adoooorrrrreeeeeiiiiiiii Joaquim !!!!!!!! escreva mais coisas de época, voce é um contador de estórias fantástico. Só uma pergunta é real ou fantasia??????

    Resposta: Você prefere que essa historia seja ficção ou realidade?

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Perfil

“Poeta, contista e cronista, que, quando sobra tempo, também é deputado”. Era essa a maneira como Joaquim Elias Nagib Pinto Haickel aparecia no expediente da revista cultural Guarnicê, da qual foi o principal artífice. Mais de três décadas depois disso, o não mais, porem eterno parlamentar, ainda sem as sobras do tempo, permanece cronista, contista e poeta, além de cineasta.

Advogado, Joaquim Haickel foi eleito para o parlamento estadual pela primeira vez de 1982, quando foi o mais jovem parlamentar do Brasil. Em seguida, foi eleito deputado federal constituinte e depois voltou a ser deputado estadual até 2011. Entre 2011 e 2014 exerceu o cargo de secretario de esportes do Estado do Maranhão.

Cinema, esportes, culinária, literatura e artes de um modo geral estão entre as predileções de Joaquim Haickel, quando não está na arena política, de onde não se afasta, mesmo que tenha optado por não mais disputar mandato eletivo.

Cinéfilo inveterado, é autor do filme “Pelo Ouvido”, grande sucesso de 2008. Sua paixão pelo cinema fez com desenvolvesse juntamente com um grupo de colaboradores um projeto que visa resgatar e preservar a memória maranhense através do audiovisual.

Enquanto produz e dirigi filmes, Joaquim continua a escrever um livro sobre cinema e psicanálise, que, segundo ele, “se conseguir concluí-lo”, será sua obra definitiva.

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