Um Pedaço de Ponte – Parte XIV

2comentários

Um cavalo chamado Totó

Totó tinha um nome comprido e importante: Antônio Carlos Maciel Filho. Mas todo mundo só o chamava de Totó. Nasceu numa fazenda e lá cresceu, livre e solto, com a inocência impregnada de malícia dos meninos que convivem com os animais, acostumados à vadiação dos bichos e às coisas naturais dos campos e currais. Pela manhã, estudava com a professora que o pai trouxera da cidade só para ele, a fim de que não crescesse burro, como as crianças do sítio, que mal aprendiam a ler na escolinha do Governo, situada meia légua mais adiante, no povoado de Areal Grande.

A noite, repassava as lições, brincava um pouco com Tininha ou ouvia as estórias engraçadas de Nhá Esperança. As tardes, porém, de chuva ou sol quente pertenciam aos dois; montavam a cavalo e saíam pelas estradas parando de casa em casa, ou iam para a Casa do Fomo ver fazer farinha. Sempre os dois, sempre juntos, ele e Tininha. As vezes, atravessavam a capoeira que ficava atrás da Casa Grande e iam até o chiqueiro espiar o barrão cobrindo as porcas. E lá ficavam um tempão, ele espicaçado pela curiosidade de Tininha, um pouco mais velha e mais bem informada:

– Olha, Totó, como o bicho até dorme em cima da outra. Pera aí…

E, com uma varinha, acordava o porco para que retomasse os movimentos, pois era o que de bom havia para ver. Tininha se chegava mais para junto dele e, assim, grudados um ao outro, ensaiavam as primeiras carícias, imitando os porcos. Tudo inocente e puro. Os dois, cada vez mais próximos do prazer.

Um dia, Tininha – que tinha, também, outro nome, pois, na verdade, se chamava Maria Otília, e era filha de Sebastião Vaqueiro – perguntou para ele:

– Totó, será que quando a gente for grande vai fazer assim?

Isso Totó não sabia direito, que dessas coisas Tininha entendia mais. Contudo, respondeu que sim e que era muito bom.

– Tu não vê que a porca até chega pra trás quando a piroca dele vai saindo dela?

-Engraçado, parece uma rosca de pua. Tu não sabe o que é pua? Aquela coisa de fazer buraco em pau…

Totó inocente, Tininha sabida. Mas lá estavam, outra vez, os dois grudados, se remexendo, remexendo, sem saber realmente para quê.

– Totó, tu me mostra tua piroca? Se tu mostrar, eu te mostro minha piriquita.

Dessa maneira, os dois se conheceram melhor, sem nada acontecer, entretanto, que já não houvesse acontecido. Mas foi nessa tarde, o céu e um sabiá-laranjeira por testemunhas, sem tirar os olhos dos bichos, que Totó, engasgado com algo que não tinha na garganta, falando de um modo tão diferente, disse à menina: Tininha, eu acho que vou te querer sempre. Quando crescer, eu me caso contigo.

Isso aconteceu numa tarde, que poderia ser de primavera, se houvesse primavera no sertão, lá pelo mês de outubro ou fim de setembro. No começo do outro ano, Dr. Maciel, por procuração do destino, levou o filho da fazenda para estudar na capital, onde entraria no ginásio. Antes de viajar, Totó deu Matreira, que já estava coberta, de presente a Tião: Olha Tião, depois que Matreira parir, ela é tua, mas a cria, se for fêmea, é minha; se for macho, é de Tininha.

Matreira era uma égua toda cheia de graça, as ancas luzidias e redondas como as da mulher mais velha e tinha os olhos esverdeados, quase da cor dos de Tininha, que também era castanha.

Quando Matreira pariu, a menina ficou em casa, torcendo:- É macho, tem quer ser macho.

E da torcida ou não, nasceu mesmo um potrinho, que mal se sustinha em pé, as perninhas dianteiras muito abertas para não cair, castanho como era a mãe, quase da cor de sua dona.

– Vou chamá-lo de Totó, Papai.

O tempo passava e Tininha crescia fazendo-se mulher, ensinando artes e coisas ao cavalinho, serviços de casa e do campo. Fazia já um ano que Totó partira para a cidade, sem nunca dar notícias, mas a garota não se preocupava muito, tratando de se recompensar:-Ele vai ser doutor!

Na semana de seu aniversário, Tininha cai doente.

– É malária, disse o médico.

Tininha teve que ir para a rede, armada diante da janela aberta, no quarto da frente, onde passava os dias a espiar a vida lá fora. Atenta aos seus barulhos familiares, à algazarra dos pássaros, o gemido triste dos carros de boi voltando da roça, a galinhada cacarejando, alegre, debaixo do cajueiro grande que dava para a outra janela, ao lado da casa. Quando a febre subia e tomava conta de seu corpo entorpecido, ela perdia, também, o interesse pelas coisas e a fazenda parecia mergulhar em silêncio e desolação. Ligando à vida, apenas a cabeça bonita de Totó, insinuada para dentro do quarto, através da janela, de onde ficava a olhá-la e a relinchar. Aquele rincho baixo e grave, como se fosse um aviso de sua presença amiga ou um convite para levantar-se “Levanta, patroa, vem comigo, que os caminhos agora são amenos”. Tião Vaqueiro chegava a se danar:

– O diabo desse cavalo parece um cachorro, meu Deus! Até o nome é de cachorro, que me perdoe o doutorzinho que está lá na capital Se a gente deixar, é capaz dele entrar e deitar, que nem um cachorrinho, debaixo de tua rede.

Mas Tião seguiu as ordens do médico, respeitou os horários e deu a Tininha todas as receitas. Em pouco tempo, estava quase boa. Mais uns dias e, certa manhã, ela acordou com a certeza de que estava curada. Nessa hora, ouviu ao longe o alegre relinchar de Totó e, fogo a seguir, o estrépito de seus cascos batendo na piçarra dura, em desabalada carreira na direção de sua casa. Sentiu, então, forças para levantar-se, e, mesmo de chambre, escapar ao fundo da rede e fugir pela janela do quarto. Montou Totó e saiu galopando, sem esteira, sem nada, segurando-se à crina do cavalo, as pernas abrasadas à barriga do animal. Debaixo do chambre, roupa nenhuma.

Pela primeira vez, sentia o contato, livre, do sexo com o espinhaço do animal Totó a levou para onde quis: passaram pela roça, entraram pela mata, cortaram o babaçual e pararam dentro do açude, onde ele a jogou nágua, com força. Era como se a amizade, depois da doença e do longo afastamento um do outro, a despeito daquela janela aberta, se consolidasse na alegria do reencontro.

E nada de Totó dar notícias. Nem foi passar as férias na fazenda, distante aquela tarde de primeiros prazeres e insuspeitado amor, ao pé do chiqueiro. Seria realmente amor?

Já com um pouco mais de quinze anos Tininha mostrava a mulher que iria ficar. Moça castanha, de cabelos cor de coco babaçu, de pernas fortes e grossas, moça que carregava seios que mais pareciam cabaças boas de beber. De beber vida. A caboclinha crescia, esperando sempre por seu amor infantil, enquanto esvaziava seu corpo dos ímpetos naturais da idade no dorso áspero e fácil de Totó. Com a mesma inocência, tinha palavras e carinhos especiais com o cavalo. Todas as tardes, ela o levava para banhar-se no açude e lá se molhavam, brincavam e se fartavam. Pelas redondezas, escondidos nas moitas, os rapazes da fazenda a espiar Tininha.

E toca imaginação a arder, mãos a funcionar e aquele gemido abafado que subia das touceiras e se transformava em vento nos ouvidos da moça, cujo vestido, molhado mostrava, por baixo da ingenuidade e da pureza a mulher escondida. “‘Escuta, Totó, escuta só o gemido das moitas. Esse gemido me dá arrepio”. Ela guardava as mãos entre as pernas, deitava à beira d’água, mexendo no ritmo que vinha das moitas.

Uma vez, Raimundo de Belinda chegou mais perto e viu a moça estendida no chão: as pernas abertas e Totó a lamber-lhe os braços, o ventre, o rosto e as coxas. A presença de Raimundo espantou o animal, que fugiu em disparada. Num instante, ele se transformou na irracionalidade do desejo e se atirou sobre Tininha, que, tocada na sua inocência, se defende e luta, como gata brava. Totó espiava de longe, sem entender, mas, na sua animalidade treinada, sabia que sua dona fora ofendida e avança sobre os dois, levantando as patas e deixando-as cair terrivelmente em cima daquela massa humana que, agora, apenas se defendia daquele ataque inesperado.

– Pára, pára, pelo amor de Deus! Tininha, manda esse bicho parar! Milagrosamente, ela consegue pôr-se de pé, erguendo os braços. E Totó, como um cavalo de circo, suspende as patas no ar, dá, com as traseiras, dois ou três passos para trás e desaba no chão. Tininha estava salva, mas Raimundo desmaiara.

Entretanto, Tininha continuava esperando pela promessa feita no chiqueiro, apesar dos três anos que Totó não mandava notícia, nem aparecia na fazenda. E Tininha, cada vez mais bela: virgem de corpo e de espírito, olhos esverdeados, corpo marrom, os cabelos cor de castanha de babaçu, pernas grossas e seios pequenos e firmes.

A fazenda do Dr. Maciel ficava à beira da estrada e o trânsito era intenso, de tal sorte que muita gente encostava para pedir uma informação ou um gole d’água.

Num dia de chuva, furou o pneu de um carro, bem próximo à casa de Tião. Seu ocupante, um homem baixo e gordo, pediu auxílio a Antônia – que era uma cabocla de bom aspecto, porém de cabeça virada e quinze anos mais moça que o marido – a única pessoa que estava em casa, pois Tião andava às voltas com o gado e Tininha, montada em Totó, corria, em loucas disparadas, pelos campos e estradas.

Quando Tininha voltou, não encontrou mais Antônia e sim as coisas todas viradas de perna pra cima. Tião retomou após dois dias, constatando, então, que a mulher o abandonara.

A partir de então entregou-se à bebida, andou ao léu, de estrada em estrada, como um vagabundo qualquer, sempre fugindo de algo que nem mais lembrava, pois, na verdade, fugia apenas de si próprio.

Certa tarde, ao chegar em casa, completamente embriagado, procurou e não encontrou Tininha. Tocou-se antão para o açude, tendo nas mãos o arreio do Totó. Lá estavam os dois, dentro d’água, como se fossem dois amigos, tomando banho juntos. Tião grita chamando Totó, que obedece docilmente. Coloca-lhe o arreio e vai amarrá-lo numa touceira distante, sob os protestos de Tininha.

– Fica quieta. Eu sei o que estou fazendo.

– Pai, vai deitar, que o Senhor está bêbado.

-Agora, tu me pega…

Pegou a moça, jogando-a no chão. Seus olhos faiscavam. Atirou-se alucinado sobre a filha, rasgando-lhe o vestido, até deitá-la completamente nua. Tentou beijá-la, não conseguiu. Tininha quis gritar, mas o grito morreu na garganta. Tão voltou a esbofeteá-la. Em vão lutava a moça para libertar-se, sentindo, contudo, que as forças lhe iam faltando. Quando ele a penetrou, Tininha desmaiou.

Foi nesse momento que Totó conseguiu arrancar a touceira a que fora amarrado e correu para acudir a dona. Vendo Tião sobre ela, lançou as patas dianteiras, atingindo-o na cabeça. Agora, apenas cheirava e lambia o rosto de Tininha e vigiava o cadáver de Tião.

Ao despertar, a moça não sabe se foge ou corre para o pai. Ao vê-lo imóvel, aproxima-se dele, pensando que dorme. Enlouquecida, vendo que ele está morto, monta Totó e corre à casa, para buscar enxada, pá e cordas. Quando chega de volta do açude, a noite já vai alta. Mesmo assim, amarra o corpo no cavalo e se embrenha pela mata adentro, guiada apenas pelo instinto de Totó. No lugar em que enterrou Tião, joga, na cova, uma cruz feita com dois pedaços de pau, amarrados com cipó.

Cadê Tião, Tininha?

Todos queriam saber.

Saiu um dia de casa dizendo que ia pra quitanda de Chico Fanta e nunca mais voltou. Foi embora e me deixou aqui sozinha com Totó.

Os dias se passavam cada vez mais longos, Tininha se sentindo mal, cansando por qualquer coisa, enjoando, enquanto ia engordando e a barriga crescendo.

Cinco meses após a morte de Tião, Totó Maciel voltou à Fazenda. Seu primeiro cuidado foi correr à casa do vaqueiro, onde encontra

Tininha, linda como sempre, mas buchudona. Não houve alegria naquele reencontro, apenas espanto e mágoa.

– Não quero mais nada com você, sua puta!

Naquele momento, Tininha sentiu que não havia mais futuro para ela, que tudo estava perdido e sem remédio. Montou Totó para chorar em disparada pelos caminhos sem fim de seu desespero. Foi então que a mata pegou fogo, no fim de uma roçada, vento soprando na direção da cova em que enterrara Tião. Já não havia razão capaz de explicar o que a empurrava para lá. Totó, relinchando, apavorado, ainda tenta salvá-la, cercado de labaredas por todos os lados. A primeira árvore, toda vermelha de fogo, o atinge bem no meio do espinhaço, a segunda se abate sobre ela.

– Por onde andará Tininha, meu Deus?

– Sumiu com aquele cavalo. Vocês não ouviram a estória que Dico de Belinda anda contando por aí?

– Que estória?

-Dizendo o Dico, Tininha estava grávida, e o pai era o cavalo Totó.

Ainda hoje, há quem conte que houve uma mulher de nome Tininha, que foi coberta por um cavalo chamado Totó. E há outros que dizem já tê-los visto, Tininha e Totó, se banhando, ao entardecer, no açude da fazenda do Dr. Maciel.

2 comentários para "Um Pedaço de Ponte – Parte XIV"


  1. mario

    muito bom cara vou no imirante e nao da para n em seu blog , meu deputado nagib 2010 15369

  2. Jorge da Celira ( o de Imperatriz)

    Engraçado aqui no blog do Joaquim que é político, a gente lê sobre tudo, política, cotidiano, cinema e por ai vai, já no blog do Décio igualmente muito bom diga-se de passagem, só se fala de política, e ele não é politico, pois é…

deixe seu comentário

Twitter Facebook RSS