Vestal, Messalina, Tartufo.
Meu pai costumava exercitar sua modesta oratória em um minúsculo anfiteatro, para uma restrita e seleta platéia, formada por minha mãe, eu, meu irmão e quem mais por acaso estivesse em nosso fusquinha verde, ano 1968, com suas rodas faixa branca e seu console de jacarandá.
Ele discursava como se estivesse na tribuna da Assembléia Legislativa, a mesma que mais tarde viria a ser batizada com seu nome. Ensaiava muitos discursos, alguns dos quais jamais chegou a proferir em plenário. Às vezes treinava alguns tão contundentes e verossímeis que chegava até a imaginar os apartes que poderiam fazer alguns de seus colegas deputados, em consonância com o que ele dizia ou em total desacordo com suas posições.
No meio de seus intuitivos exercícios de fonoaudiólogia e oratória, Nagibão narrava partidas de um futebol imaginário e ideal, onde seu time sempre jogava bem e vencia de goleada os times adversários. Eram jogos entre Moto, Sampaio, Mac e Ferroviário ou embates de agremiações como Flamengo, Corinthians, Cruzeiro e internacional.
Lembro de uma partida “irradiada” por ele que muito me marcou. Tratava-se de um jogo verdadeiro entre Santos e Arsenal. Ele ouviu esse jogo pelo rádio e repetia como se o estivesse vendo. Falava os nomes de todos os jogadores do time inglês sem nenhuma vergonha de pronunciá-los erradamente.
Naquela época, dentro do carro, indo para o sitio ou para praia, jantar no Palheta ou no Bem, meu pai também ensaiava o que iria dizer em “A Voz do Vale do Pindaré”, seu programa diário na Rádio Difusora.
Foi dentro daquele fusca que eu aprendi a admirar a capacidade que as pessoas têm em falar ao público. Foi vendo meu pai treinando o que iria dizer na Rádio ou na Assembléia que descobri a importância de falar bem.
No entanto aprendi com meu pai muito mais sobre conteúdo do que sobre forma. Na verdade, com ele, sobre forma eu só aprendi a lógica dela, seu ritmo, sua freqüência, a entonação, coisas que muitas das vezes são bem mais importantes que o próprio conteúdo estético ou mesmo filosófico do que se quer dizer.
Estou fazendo esse floreado todo só pra falar sobre um tema recorrente em quase todos os discursos de meu pai e também em sua própria vida. Ele abominava a hipocrisia, a prepotência, a arrogância, a empáfia, a futilidade e a subserviência.
No meio de muitas palavras chaves que ele costumava usar, algumas foram muito marcantes para mim. Vestal, Messalina e Tartufo foram dentre todas as que mais me marcaram, mesmo que só tivesse vindo saber qual eram seus significados depois de escarafunchar um velho dicionário de capa verde que habitava uma das estantes de minha casa.
Estas palavras têm me perseguido desde a minha infância. Tenho a mesma aversão que meu pai tinha por pessoas com essas características. De tanto vê-lo combater pessoas com esse tipo de comportamento, criei em mim uma incrível repulsa por esse tipo de gente.
Vestais, na Roma Antiga, eram as virgens designadas para serem assistentes da deusa Vesta. Mulheres que gozavam de uma situação social respeitável e deviam manter-se castas sob risco de sofrerem punições, inclusive mortais. Por terem instrução e situação econômica favorável, eram muito consultadas, sobretudo em assuntos políticos. Mas devido a sua inarredável condição humana, algumas delas não eram assim tão “castas” e muitas se escondiam atrás do manto da hipocrisia.
Messalina transformou seu nome em sinônimo de ‘mulher lasciva e dissoluta em excesso’, segundo definição do Dicionário Aurélio. Filha de uma família tradicional da aristocracia da República Romana, foi a terceira mulher do imperador Cláudio. Figura pérfida, capaz das maiores atrocidades, como tramar sem nenhuma culpa assassinatos e intrigas, recheando sua vida curta e polêmica de taras e crueldades. Quando morreu, aos 22 anos, tinha uma história de escândalos marcados pela ninfomania e obsessão pelo poder.
Tartufo que foi escrita por Molière, logo se transformou numa das mais famosas comédias da língua francesa de todos os tempos. Foi quase que imediatamente censurada pelos devotos religiosos que, no texto, foram retratados na personagem-título como hipócritas e dissimulados. Na língua portuguesa, o termo tartufo, como em outros idiomas, passou a ter a acepção de pessoa hipócrita ou falso religioso.
Constatei, com certo pesar, que essas palavras, esses adjetivos, servem como luva para designar certas pessoas, algumas aparentemente acima de qualquer suspeita, mas que se transformam totalmente, bastando que para isso se faça necessário. Bandidos e mocinhos são todos iguais.
PS: Acabei de ter um Déjà Vu. Sinto como se já tivesse falado desse assunto, mas com toda certeza, se o fiz, não foi pelo presente motivo.
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