Nara Leão e Camaleônica musicalmente…

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Certo dia, Nara Leão teve uma ideia que aos ouvidos cansados de hoje pareceria banal, mas naquele ano de 1977 estava longe de ser corriqueira: quis fazer um disco inteiro de duetos, cada faixa dividida com um cantor de quem ela gostasse e enriquecida pela companhia de instrumentistas de primeira. Nasceu o álbum Meus Amigos São um Barato, e os amigos a que se refere o título constituíam um elenco capaz de assombrar ouvidos amantes da música brasileira em 2010.

Contou com a adesão imediata de companheiros do tempo da bossa nova: Tom Jobim, João Donato, Roberto Menescal, Carlos Lyra. Edu Lobo lembrou com a anfitriã os tempos em que ambos eram cantores de protesto, e Chico Buarque trouxe nada menos que a hoje clássica João e Maria. Enfeitou o disco com as flautas de J.T. Meirelles, sumidade do samba-jazz e arranjador do disco de estreia de Jorge Ben. Poucas pessoas no Brasil deveriam ser menos roqueiras que Nara Leão, mas mesmo assim ela convocou o gigante gentil Erasmo Carlos, que a presenteou com “Meu Ego”, (ouça) assinada por ele e Roberto Carlos.

Nara também tinha amigos tropicalistas: Gilberto Gil compôs o manifesto racial “Sarará Miolo” especialmente para ela cantar, e Caetano Veloso compareceu com “Odara“, que em breve irritaria ouvidos ditos politizados por querer falar “apenas” de cantar, dançar e soltar o corpo.

Moça capixaba criada em apartamento carioca burguês, Nara não se contentou com tamanho grau de variedade musical (e ideológica): do Nordeste agreste, trouxe as sanfonas de Dominguinhos e Sivuca. Do mundo do samba, lançou luz sobre um cantor desconhecido chamado Nelson Rufino, que compunha para Alcione e Roberto Ribeiro e na década seguinte seria um dos nomes por trás do samba de fundo de quintal – é de autoria de Rufino o partido alto “Verdade” (“descobri que te amo demais”…), estrondoso na voz de Zeca Pagodinho.

A mistura musical talvez parecesse disparatada para os ouvidos frescos de 1977, mas havia uma estranha união (ainda que temporária) entre tantas tendências, e o nome do mistério era Nara Leão. Meus Amigos São um Barato foi um disco discreto, que não causou furor nem fez barulho, mas era uma síntese da história, da personalidade e do programa artístico-político de uma das maiores mulheres da história da música brasileira. Com voz de gatinho, Nara era leão e carregava como virtude mais valiosa o poder de parecer autora de cada canção que decidisse interpretar.

Joelhos formosos

Não existia David Bowie e muito menos Lady Gaga quando Nara camaleão surgiu como garota-prodígio da bossa nova, no final dos anos 1950 (tinha 16 anos em 1958 quando Elizeth Cardoso cantou Chega de Saudade com João Gilberto ao violão e assim deu partida à revolução desenvolvimentista da bossa). Pensavam, então, que Nara fosse apenas os joelhos formosos que faziam mais sucesso que ela – não se fala muito isso, mas a bossa era um movimento essencialmente machista (como de resto tudo mais na música e no Brasil de então). Rebelde com causa, Nara emburrou e não lançou LP algum até 1964, quando a bocarra de uma ditadura pilotada pelos militares se arreganhava por sobre o país.

A bossa nova estava estranhamente desaparecida do disco Nara, que tinha entre seus pontos altos um afro-samba com o seguinte teor: “Deus fez primeiro o homem, a mulher nasceu depois/ por isso é que a mulher trabalha sempre pelos dois/ homem acaba de chegar, tá com fome, e a mulher tem que olhar pelo homem/ e é deitada, em pé, mulher tem é que trabalhar”. Nada mau para uma cultura misógina que, 46 anos mais tarde, ainda incita o hábito de tratar mulheres por “vagabundas”.

De mal com a bossa, Nara se convertera em antiexemplo daquilo que a leveza ensolarada de Tom e João preconizava. Tinha virado uma cantora de protesto, uma folk singer nos moldes da norte-americana Joan Baez, preocupada com as dores do povo, a seca e a fome no Nordeste, a pobreza nos morros cariocas. Ao longo de sete LPs individuais preparados em quatro anos, liderou a corrente nacional-participante da música nacional – a recém-batizada MPB. Nessa fase, gravou uma galeria formidável de compositores, que causaria timidez no elenco colorido de Meus Amigos São um Barato.

Do húmus do samba carioca, resgatou autores que andavam recolhidos ao quase-anonimato: Cartola, Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, Padeirinho (autor da plangente “Favela”, quando as favelas estavam longe de ser a enormidade que são hoje), Monsueto Menezes, Zé Keti, Elton Medeiros. Do sertão maranhense, trouxe a música do zangadíssimo João do Vale, coautor de Carcará e Sina de Caboclo. Com todos os olhos e ouvidos abertos para o novo, ao mesmo tempo fez-se pioneira em gravar compositores jovens e pouco conhecidos: Chico Buarque, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Torquato Neto, Capinan, Sidney Miller, Sueli Costa, Dori Caymmi, Jards Macalé, Francis Hime.

Nos quatro discos lançados em 1967 e 1969, parecia esboçar uma guinada de volta à velha tradição musical brasileira, gravando João de Barro, Ary Barroso, Lamartine Babo, Custódio Mesquita, Assis Valente, Dorival Caymmi. Era alarme falso: a ex-bossa novista que virara sambista de protesto estava prestes a se filiar às hostes da revolução comportamental chamada tropicália.

Rebeldia em negativo

O disco de 1968, orquestrado e regido pelo maestro Rogério Duprat, abordava chorinho de Ernesto Nazareth e peças dos eruditos Heitor Villa-Lobos e Alberto Nepomuceno, mas ao mesmo tempo mergulhava no cancioneiro furioso de Caetano Veloso e abraçava o ideário tropicalista de “Lindoneia”, “Mamãe Coragem” e “Deus Vos Salve Esta Casa Santa”. Nessa última, investia contra a tradicional família brasileira, aquela que apoiava e sustentava ditadura militar, em versos sarcásticos como “no apartamento vizinho ao meu/ que fica em frente do elevador/ mora uma gente que não se entende, que não entende o que se passou/ Maria Amélia, a filha da casa, passou da idade, não se casou/ ó, Deus vos salve esta casa santa/ onde a gente janta com nosos pais”.

Como de hábito, o disco foi discreto e silencioso como sua dona, mas o recado estava dado. Com o AI-5, Nara (que andava fazendo visitas sutis ao cancioneiro esquerdista de Pete Seeger, Bertolt Brecht, Malvina Reynolds, Jacques Brel e Guantanamera) partiu para o exílio em Paris e gravou, finalmente, seu primeiro disco de bossa nova ortodoxa, batizado Dez Anos Depois.

O  ímpeto da primeira década não voltaria a se repetir, mas ao longo dos anos 1970 ela se tornou uma revolucionária musical ao avesso, eloquente mais pela negação que pela afirmação. Abandonou a gravação de álbuns nos primeiros anos da nova década, e em 1972 foi atriz no filme Quando o Carnaval Chegar, contracenando com Chico Buarque e Maria Bethânia. Entre 1974 e 1975, gravou música caipira e dedicou o LP de volta, “Meu Primeiro Amor”, a um repertório interiorano cuja meta principal era ninar seus dois filhos pequenos.

 O ápice da rebeldia em negativo se deu em 1978, com …E Que Tudo Mais Vá pro Inferno. Como o nome indica, o disco tratava de dar perfume bossa-novista à obra da dupla Roberto e Erasmo, que à época ninguém na MPB julgava de bom tom revisitar. Nara disse não aos preconceitos contra a suposta cafonice do “Rei” conservador e cobriu de suavidade baladas desgarradas como “O Divã”, “A Cigana”, “Cavalgada” e “Proposta”.

O fogo garimpeiro ainda esquentou o disco de 1981, Romance Popular, no qual Nara se aproximou de alguns do mais arretados compositores nordestinos do momento, gravando inéditas de Raimundo Fagner (que ela ajudara a revelar em 1973), Geraldo Azevedo, Robertinho de Recife, Fausto Nilo e o trio Clodo, Climério e Clésio.

A esta altura, o câncer no cérebro já limitava sua vida. Após um disco de samba de raiz (Meu Samba Encabulado, de 1983), acompanhou à distância os sonhos brasileiros de redemocratização, as Diretas Já e a Nova República, e ocupou os anos que lhe restavam regravando pencas de clássicos da bossa e vertendo para o português alguns standards da canção norte-americana. Morreu em 1989, aos 47 anos.

Nestes primeiros anos de um século que ela prenunciou, mas não conheceu, é lembrada com discrição semelhante à que guardava na voz e no comportamento pós-juventude. A sobriedade que a acompanhará através dos séculos às vezes faz obscurecer o fato de que Nara Leão foi e é uma das maiores compositoras brasileiras, mesmo sem ter cultivado o hábito de inventar letras ou melodias.

Texto: Jornalista/Crítico Musical Pedro Alexandre Sanches.

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