D2 canta Bezerra da Silva

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O primeiro samba gravado por Marcelo D2 foi ao lado do amigo Bezerra da Silva: “Confesso que fiquei um pouco nervoso”, revelou o cantor. Marcelo D2 conta que ficou amigo do sambista Bezerra da Silva (1927-2005) em 1994, antes mesmo de lançar o primeiro álbum como líder do grupo Planet Hemp, e que a amizade se estreitou mais em 1998, quando o pai do rapper carioca morreu. “Bezerra foi muito bacana comigo. Sabia que eu adorava, me ligou e disse: ‘Vem cá, que a Regina vai fazer um feijão branco com dobradinha para você’”, lembra.

Em 1997, os integrantes do Planet haviam sido presos por suposta apologia ao uso de maconha nas letras de seus raps. Também em 1998, Bezerra retomou um samba de 1992, “Garrafada do Norte”, adaptando um dos versos para “o Planet Hemp quer saber por que é que essa erva é proibida”. Mais tarde, em 2003, convidou o amigo mais jovem para gravar com ele a mesma canção. “Foi a primeira vez que gravei cantando samba”, afirma D2, referindo-se ao fato de que seus raps, ainda que sempre influenciados pelo samba, são falados, e não cantados. “Confesso que fiquei um pouco nervoso, quando chegou a hora de gravar a voz. Mas na rua eu canto mais samba que rap, foi tranquilão.”

Capa do novo álbum de D2

O ciclo fecha-se agora, com o lançamento de “Marcelo D2 Canta Bezerra da Silva”, seu primeiro disco de samba, digamos, ortodoxo (“acho que vai ser o único”, diz) – e, por consequência, seu primeiro trabalho sem rap e inteiramente cantado à moda antiga. “Mexi muito pouco nos arranjos, a intenção era fazer uma homenagem, algo que ele gostasse de ouvir”, explica.

A frase pode dar a entender que Bezerra talvez não gostasse do rap-rock do Planet, mas essas historietas demontram – e D2 confirma – que o sambista foi uma espécie de tutor tanto do mote central do Planet, “legalize já”, como da fusão entre hip-hop e samba que o rapper passou a promover em carreira solo, a partir de 1998. Fizeram turnê juntos e mantiveram os laços. “Falávamos muito sobre música, mas os papos mais legais eram outros, hoje, seriam sobre o caso do goleiro Bruno.”

Se a conexão não estava explícia até hoje, o sexto CD individual de D2 a escancara. “O rap que eu quero fazer é o samba que Bezerra cantava, sarcástico, político, politicamente incorreto”, justifica.

O álbum é produzido pelo parceiro Leandro Sapucahy, que também orientou a guinada sambista de Maria Rita. Privilegia o lado satírico da obra subvalorizada de um artista que D2 chama de “a voz da favela” – e que, como lembra o pupilo, detestava o rótulo de “cantor de bandido”. Estão presentes no tributo, por exemplo, clássicos populares bem-humorados como “Minha Sogra Parece Sapatão” (1983), “Quem Usa Antena É Televisão” (1986) e “Pai Véio 171” (1983).

O nexo imediato se dá nos sambas (igualmente irônicos e críticos) sobre maconha “Malandragem Dá um Tempo” (1986), dos célebres versos “vou apertar, mas não vou acender agora”, e “A Semente” (1987). Resvala também no desabafo “Partideiro sem Nó na Garganta” (1992), no qual Bezerra se diz “partideiro indigesto”, queixa-se da própria fama (“dizem até que eu fumo maconha/ que ando com a venta entupida de pó”) e denuncia preconceitos (“dizem que eu sou malandro, cantor de bandido e até revoltado/ somente porque canto a realidade/ de um povo faminto e marginalizado” e “dizem que eu gravo música de baixo nível/ porque falo a verdade que ninguém falou”).

“Bezerra gravava músicas do pessoal dele, do cara que era vigia de guarita de condomínio. Falava do padre que cheira cocaína, do pai-de-santo que aceita cheque-ouro”, narra o intérprete. “Me diverti pra caramba, tudo que envolve Bezerra é tão legal, tão divertido. Ele virou crente pouco antes de morrer, pelo sim pelo não – chegando lá no céu mal não vai fazer”, gargalha.

Editado pela multinacional EMI e interessado no mercado de massa, “Marcelo D2 Canta Bezerra da Silva” não chega a traçar um retrato completo do homenageado. A verve politicamente engajada aparece em “Partideiro sem Nó na Garganta” e, no máximo, em “Saudação às Favelas” (1985). Mas ficam de fora sambas mais ferinos (e sérios), como aqueles de crítica frontal à elite econômica (“seu doutor só combate o morro/ não combate o asfalto também/ como transportar escopeta, fuzil, AR-15?/ o morro não tem/ navio não sobe morro, doutor/ aeroporto no morro não tem”, dizia em 1996, em “Desabafo de Juarez da Boca do Mato”), à classe política (“Presidente Caô Caô” era o nome do disco de 1992, inspirado em Fernando Collor) e à mídia (“sim, mas a favela nunca foi reduto de marginal/ ela só tem gente humilde, marginalizada, e essa verdade não sai no jornal/ a favela é um problema social”, cantava na orgulhosa “Eu Sou Favela”, também de 1992).

D2 conhece a faceta mais cáustica de Bezerra, como mostra ao mencionar que a frase “filho de rico é inteligente, filho de pobre é malandro” era um mote que o sambista gostava de repetir. Mas explica por que preferiu privilegiar seu lado mais leve, se é que o termo “leve” cabe para alguém sempre sintonizado com a vida real nas “colinas” (como ele gostava de chamar): “Eu podia fazer um trabalho arqueológico do Bezerra, mas priorizei músicas que mostram aquele malandro carioca, apesar de ele ser pernambucano”.

Ah, sim, Bezerra da Silva nasceu em Recife e iniciou carreira como percussionista da Globo e como cantor de cocos, e não de sambas de protesto. E D2, concluída a homenagem há muito planejada, pretende se mudar ainda neste ano para Los Angeles, onde planeja viver por no mínimo dois anos. “Preciso de um pouco de ócio, para pensar em fazer algo interessante. Mas é por um tempo, não é ficar lá e nunca mais voltar.” Algum risco de voltar americanizado? “Tomara”, ri. “Tomara que eu fique sambalelê, tipo um Sergio Mendes”, conclui, citando seu ídolo bossanovista radicado na mesma cidade desde a década de 1960.

Texto: Jornalista Pedro Alexandre Sanches

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