Um show pra acordar a Serpente

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Texto enxuto e bem escrito pelo jornalista e poeta Fernando Abreu sobre o show de Zeca Baleiro, no último sábado (6), no Centro de Convenções Pedro Neiva de Santana (Calhau). Merece um Post…

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Pelo menos pra mim, Zeca Baleiro fez o show do ano sábado passado. E não estou replicando a ironia galhofeira que dá nome ao disco. De fato, me sinto gratificado por ter estado lá, principalmente porque o show me deu a oportunidade (o chamado gancho, se este fosse um texto jornalístico) de comentar o disco, o que venho querendo fazer desde o ouvi pela primeira vez e reconheci ali o artista em grande forma.

Foi um sábado cheio, (de coisas boas, felizmente) e terminei chegando às carreiras. Só deu tempo de dar um abraço no grande Sérgio Castellani, que aguardava sorridente os quinze minutos de tolerância pra começar a festa. Terminamos sentando na última fila, um pouco pela minha inapetência momentânea de batalhar dois lugares mais à frente, se é que me entendem.

Foi curto o tempo de espera, um atraso básico de quinze minutos logo esquecido pela presença do artista no palco. A primeira constatação é de uma sólida cumplicidade com a platéia. Zeca se relaciona cada vez melhor com seu público, não manipula, apenas navega na receptividade sem restrições que toma conta da cena.

Daí em diante, o que rolou foram sucessivos momentos soul satisfaction, induzidos pelas excelentes condições acústicas, algo bem difícil de encontrar em São Luís, a menos que se corra para o velho e bom Arthur Azevedo, mas aí não daria pra ser apresentação única.

É obrigatória a menção à banda, com as desculpas por eventuais omissões: Tuco Marcondes (violão, guitarra, gaita, ukelele e banjo); Fernando Nunes (baixo e violão); Kuki Stolarski (bateria e percussão); Pedro Cunha (teclados, samplers, sintetizadores e acordeon) e Adriano Magoo (teclados, samplers, sintetizadores e acordeon), pareciam contagiados pela satisfação do artista em se apresentar no lugar onde tudo começou (a ilha, não o palco).

Posso lembrar aqui vários momentos grandiosos de uma apresentação sem altos e baixos, o que farei de forma totalmente aleatória, ao sabor da memória afetiva, olfativa e auditiva. Na verdade, poderia me dar por satisfeito em exclamar: “do c….” e ponto final. O show foi robusto do começo ao fim, a voltagem oscilando naturalmente, sem fogos de artifício.

Em todo caso, destaco a execução de A Serpente, pérola de Zeca e Celso Borges, acompanhada por espontâneas matracas de mão da platéia no refrão: “eu quero ver, eu quero ver a serpente acordar…”. Tão bonito que o artista chegou a pedir bis. Magia pura, mostrando que nossa identidade está bem tatuada na alma, sem que precise se transformar numa caricatura de si mesmo ao sabor de canhestras marquetagens.

Ainda fora do recheio do disco, no finalzinho, Zeca tocou a clássica A maçã, de Raulzito, comentando sobre a “beleza utópica da canção” que prega o amor sem donos. Bem antes, a ótima releitura da ótima Se eu fosse marinheiro, canção com letra do poeta Antonio Cicero que terminou ficando mais conhecida na voz de Adriana Calcanhoto do que na mana Marina Lima. Igualmente marcantes também as leituras da banda para Alma não tem cor e Babylon.

Do repertório do disco, só torço o nariz para Meu Amigo Enock, engraçadinha mas ordinária que, se não compromete o conjunto também não soma. E aqui já estou falando de O disco do ano, em minha opinião um dos momentos luminosos na discografia desse artista prolífico e multifacetado. Vai soar estranho o que vou dizer, mas discordo da clave humorística na qual o disco vem sendo trabalhado. Acho que não corresponde ao que o trabalho tem de essencial, que remete muito mais ao agridoce Líricas, embora tudo na embalagem diga o contrário.

Digo isso pensando em O Desejo e Ultimo Post (parceria com a poeta Lucia Santos), duas obras-primas, mas também nas ótimas Ela Não se Parece com Ninguém (essa eu queria ter escrito, confesso), Nu e Mamãe no Face, canção que dá muito mais o que pensar do que possam insinuar nossos vãos polegares apontando para os céus virtuais. Evoé, Baleiro.

Texto: Fernando Abreu – Jornalista e Poeta

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